Suspense/Drama
Data de Estreia no Brasil: 17/11/2016
Direção: Paul Verhoeven
Distribuidora: Sony Pictures
O fim de uma cena de estupro... É assim
que “Elle” decide começar sua trama de suspense, com um ato vil de violência se
encerrando assim que o espectador acabou de se sentar para acompanhar a
projeção. Contando com uma protagonista com altos graus de sociopatia e que
parece a todo momento travar duelos verbais com todos a sua volta, o novo longa
de Verhoeven é um suspense que se equilibra no estudo de personagem, já que ao
ser violentada Michelle (Isabelle Huppert) decide não recorrer a polícia e retomar
sua rotina imediatamente, enquanto o seu agressor parece retornar para fazer
terror psicológico com sua vítima... É fácil perceber que o longa não é fácil
de ser assistido.
Porém a sua eficácia se deve a complexidade de sua
personagem, Michelle Leblanc (Isabelle Huppert) uma mulher com características
difíceis de gerar empatia para com o público (na verdade, ela é um indivíduo
desprezível), transformando pequenos diálogos do dia-a-dia em verdadeiras
quedas de braço na qual procura estabelecer sua relação de poder sobre outros. Trabalhando
em uma empresa de vídeo games, cujo conteúdo gráfico de violência e misoginia é
apenas um reflexo dos temas do filme, Michelle não pensa duas vezes antes de
humilhar um colega de trabalho que se mostra insubordinado, ao mesmo tempo que
sua língua afiada não perdoa nem mesmo sua própria mãe. A personagem não
consegue nem mesmo perdoar a imbecilidade do próprio filho, apresentando ao
rapaz um sorriso que surge como mera formalidade, num misto de pena e vergonha
alheia.
Caso fosse interpretada por uma atriz menos
competente, Michelle certamente poderia se tornar uma criatura tão repulsiva
por seus atos que a imersão do espectador poderia ser comprometida. Mas
felizmente o papel caiu nos braços de Isabelle Huppert que consegue esboçar
tanto elegância e carisma em sua vilania, surgindo como uma atuação poderosa em
sua minúcia e discrição. A personalidade da protagonista é tão complexa que é
inevitável o choque e a compreensão de certas atitudes e pensamentos por parte
dela, sendo o ápice de tal aspecto a relação que a protagonista desenvolve ao
longo do filme com o estupro sofrido, algo que condiz completamente com a
narrativa, ainda que haja uma necessidade de se problematizar tal perspectiva
(o que farei COM SPOILERS ao final deste texto).
Aclamado como o filme de retorno do cineasta
Holandês Paul Verhoeven, “Elle” conta com uma direção segura do veterano
cineasta que consegue criar uma tensão crescente ao longo do filme (sem
recorrer somente para uma investigação da identidade do estuprador ou querendo
polemizar de forma gratuita), ao mesmo tempo em que estabelece momentos
surpreendentes de humor que surgem como uma grata surpresa pelo conteúdo pesado
e denso do filme – e talvez a graça seja potencializada justamente por um riso
nervoso do espectador frente a situações presenciadas.
Além disso, a direção de arte faz um trabalho
contido, porém certeiro ao compor a casa da protagonista como um ambiente frio
e extremamente organizado, no que remete diretamente a obsessão por controle da
proprietária. Ainda, é excepcional notar como o figurino parece saber como
estabelecer bem as cores das roupas usadas por Michelle de acordo com os
acontecimentos em vigência: como o vestido vermelho que a personagem usa na
festa de natal e que pontua suas reais intenções de seduzir uma pessoa, ou o
moletom cinza que ela utiliza para passar um ar de indiferença frente a
violência sofrida por ela (e que ecoa maravilhosamente bem no ar pragmático que
Huppert imprime em cena). A junção perfeita de tais qualidades pode ser
refletida ainda no figurino de tons amarelos de um personagem e que encontra
uma rima visual de sua coloração ao final do filme com uma parede sendo pintada
de amarelo – e que gera questionamentos intrigantes quanto ao seu significado.
A junção de todos estes elementos pode por vezes
soar levemente desajeitada em conciliar o estudo de personagem com o thriller
principal, já que a estrutura do roteiro se alterna em longos momentos que
desenvolvem um destes pontos e depois o outro (havendo assim pouca fluidez
entre determinados “episódios” retratados pelo filme). Ainda, o seguimento
envolvendo o passado da protagonista com o pai soa enfadonho por uma resolução
pouco inspirada (o mesmo pode ser dito quanto ao relacionamento com sua mãe),
mesmo que tal relacionamento com o passado possa funcionar como um comentário
sobre o horror da violência suburbana. Da mesma forma, a capacidade do longa de
discutir a relação entre jovialidade, sexo e poder é algo que amplia e muito a
psique da Michelle que possui um instinto auto-destrutivo palpável, o que a
coloca como uma das personagens mais emblemáticas dos últimos anos – e Isabelle
Huppert com uma das atuações mais impressionantes de 2016.
(Dedico estas próximas linhas para discutir
brevemente alguns aspectos de “Elle” que vêm gerando muito debate, então aviso:
SPOILERS A FRENTE)
O impulso auto-destrutivo que apontei no último
parágrafo e a clara sociopatia que pontuei no primeiro acabam por emergir na
forma com que a protagonista parece desenvolver um caráter masoquista em
relação ao seu estupro, já que Michelle parece demonstrar certa excitação por
parte do ocorrido assim que descobre que o seu agressor é na realidade seu
vizinho, um potencial “affair”. Isto, aliás, é um ponto importante para que
percebamos a extensão de sua sociopatia para seu próprio corpo, o que reflete o
estado controverso em que a mente da protagonista se encontra ao estabelecer a
relação de atração com aquele sujeito com um visível transtorno mental (outro elemento problemático). Em
outras palavras, o ocorrido se conecta de maneira perfeita a narrativa.
Contudo, “Elle” é uma obra escrita, dirigida,
produzida e adaptada por homens (de um livro original de Phillipe Dijan) o que
depõe para problematizar o caráter fetichista da projeção. Entenda: por mais
que faça sentido para a construção da personagem, tal ato reflete um pensamento
masculino proveniente da cultura do estupro, sendo uma construção problemática
advinda da imaginação e criatividade de um homem – com direito até a uma
relação entre o estuprador e problemas psiquiátricos (algo que fica claro com a
fala final de sua esposa, que aponta para a consciência desta frente aos atos
do marido). Tal perspectiva não torna o filme menos impactante ou menos
eficiente (na verdade, pode-se até dizer que é o contrário), mas é importante
debater hoje e sempre tais elementos para que o fetichismo de tal violência não
aflore de forma (ainda mais) banalizada no cinema.
Por Han Solo
Ótimo
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